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Pesquisa em música no Brasil: aspectos históricos, características e desafios atuais

Atualizado: 26 de nov. de 2020

Luis Ricardo Silva Queiroz


A pesquisa em música no Brasil tem passado ao longo das últimas décadas, sobretudo a partir do início do século XXI, por (re)definições importante para sua consolidação no país, com a expansão dos programas de pós-graduação stricto sensu e o consequente aumento da formação de pesquisadores, com o desenvolvimento quantitativo e qualitativo da produção científica na área e, fundamentalmente, com a (re)estruturação, a (re)definição e a (re)criação de bases epistemológicas e metodologias capazes de abarcar as diferentes perspectivas investigativas e os múltiplos campos de estudo do fenômeno musical.


Utilizando lentes teóricas, procedimentos e estratégias investigativas de áreas variadas, bem como pilares epistêmicos e metodológicos mais específicos do seu universo de estudo, a área de música tem se constituído como um campo autônomo de conhecimento que, sem se limitar aos limites disciplinares, têm trabalhado com uma pluralidade de formas de pensar, produzir e estudar música. Assim, de maneira geral, vem lidando e trabalhando com problemas e abordagens comuns às ciências em geral, mas tem necessitado e buscado, cada vez mais, desenvolver instrumentos específicos para lidar com a complexidade e com as particularidades da área de música, contemplando as suas diferenciadas formas de manifestação e expressão.


As características estético-estruturais, os processos e as situações de transmissão e criação, as distintas possibilidades de performance e as dimensões socioculturais do fenômeno musical têm constituído a base dos estudos da área na atualidade. Esses elementos da música têm sido o foco de debates e estudos da área, estabelecendo fundamentalmente os problemas, as investigações e as descobertas no campo da ciência musical contemporânea.


Considerando o atual cenário da pesquisa em música no Brasil, este artigo apresenta e analisa aspectos fundamentais que têm caracterizado a produção do conhecimento científico-musical no país, apontando para dimensões políticas, formativas e metodológicas que configuram o campo da música como ciência. As discussões realizadas estão embasadas em pesquisa bibliográfica, sobretudo em publicações relacionadas ao campo da musicologia e da produção do conhecimento musical; pesquisa documental em fontes diversas que contemplam à ciência e à pós-graduação no Brasil; e também experiências empíricas obtidas a partir da minha atuação como pesquisador e orientador de cursos de pós-graduação stricto sensu na área.



Aspectos históricos da pesquisa em música


Uma discussão mais aprofundada sobre aspectos históricos da pesquisa em música foge aos objetivos deste texto, todavia há tendências e diretrizes mais gerais que marcaram os rumos da produção do conhecimento científico-musical e que merecem ser mencionadas, considerando que estão na base do desenvolvimento e das perspectivas que norteiam a atual realidade dos estudos em música. Nesta primeira parte do trabalho, apresento um breve panorama histórico sobre a consolidação da área de música como ciência.



A configuração da música como campo de pesquisa científica


A partir do século XIX, com o realinhamento das perspectivas e direcionamentos dos estudos sobre música, estabeleceu-se o que poderíamos chamar de bases epistêmicas e metodológicas da pesquisa musical contemporânea. Em linhas gerais, percebe-se que a área de música incorporou mudanças e sistematizações relacionadas a definições gerais acerca dos modos de produção do conhecimento que foram decisivas para os rumos da ciência “moderna”. Definições essas que problematizaram o corpus de conceitos, diretrizes investigativas, “objetos” de pesquisa, anseios e funções da produção de conhecimento, legitimação do saber científico, entre outros aspectos que marcaram a ciência do século XIX.

Nesse contexto, a musicologia, termo empregado para designar um campo científico que abrangia praticamente todo o escopo do conhecimento musical, ganhou forma e status de ciência, delineando de maneira sistemática as abordagens e fenômenos de estudos que constituíam o campo investigativo da música. Segundo Kerman (1987, p. 1), o termo musicologia foi originalmente entendido como um vasto campo que incluía “o pensamento, a pesquisa e todos os aspectos possíveis da música”.Assim, “a musicologia abrangia desde a história da música ocidental até a taxonomia da música ‘primitiva’, como era então chamada, desde a acústica até a estética, e desde a harmonia e o contraponto até a pedagogia pianística”. Nessa perspectiva, subáreas da música como: educação musical, etnomusicologia, composição, entre outras, estavam, de certa forma, contempladas no âmbito da “musicologia”, mesmo que de forma restrita em relação às definições e perspectivas de estudo atuais desses campos. O fato é que estudos sobre música certamente existiam desde, pelo menos, a Grécia antiga, mas eram realizados dentro de perspectivas mais gerais do conhecimento sem caracterizar um campo autônomo de produção científica. Como afirma Duckles (2011), “até a segunda metade do século XIX o estudo da música foi considerado não como uma disciplina independente, mas como parte de conhecimentos gerais que davam tratamento teórico a questões especificamente musicais”1. Para o referido autor, Karl Franz Chrysander foi quem evidenciou que a musicologia deveria ser tratada como uma ciência autônoma, com seu próprio campo de domínio e que, portanto, estaria no mesmo patamar de outras disciplinas científicas. De acordo com Bastos (1991), Chrysander estabeleceu, por volta de 1863, o termo ciência musical (Musikalische Wissenchaft), transmutado posteriormente para Ciência da Música (Musikwissenschaft), marcando uma nova configuração para o campo científico dos estudos musicais.


"Segundo tudo parece indicar com essa palavra [, Musikwissenschaft, ] o que Chrysander pretendeu foi indicar uma nova ordem nos tradicionais estudos de História da Música e de Teoria Musical, ordem essa que postulava que a música do passado deveria ser editada e executada rigorosamente conforme o espírito de sua época e locus de criação, sem concessões aos gostos presentes (Bastos, 1991, p. 118, grifos do autor)."


No final do século XIX, a partir das definições de Guido Adler (1885) a musicologia passou a ser entendida como “musicologias”, apontando para singularidades, intrínsecas à

área de música, que caracterizavam diferentes focos investigativos. A partir desse período, emergiram especificações de uma musicologia que abarcava outros repertórios e culturas musicais para além do ocidente, destacando a chamada “musicologia comparada”como uma das vertentes musicológicas da época. Desde esse período, passou-se a utilizar uma classificação para as musicologias, dividindo-as em pelo menos três grandes campos de estudo: “musicologia histórica”, “musicologia sistemática” e “musicologia comparada” (tendo essa última servido de base para as primeiras pesquisas de um campo que posteriormente se tornaria a etnomusicologia).



Os estudos musicais sobre a ótica do positivismo


O pensamento positivista estabeleceu aspectos que ainda hoje estão na base de abordagens contemporâneas da pesquisa. Ao visar a unidade da ciência, o que ficava implícito na ótica positivista era a premissa de que os fenômenos sociais e culturais deveriam ser tratados da mesma forma que os objetos físicos das ciências exatas. “Essa posição é consistente com a ideia realista de que existe uma separação entre o cognoscente e o objeto conhecido” (Santos Filho, 2001, p. 17). De acordo com esse ponto de vista, os fenômenos sociais e culturais constituídos a partir de interações humanas, assim como os objetos físicos, têm uma existência independente do observador e de seu interesse. Nesse sentido, a pesquisa em ciências humanas deveria ser uma atividade neutra em que o pesquisador não poderia avaliar ou fazer julgamentos, agindo “objetivamente” a ponto de evitar que suas convicções e valores pessoais interferissem no processo investigativo.


Na abordagem positivista, o trabalho de pesquisa é considerado fundamentalmente uma atividade racional que visa explicar os “objetos de estudo”, estabelecendo relações de causa e efeito entre as suas variáveis. O importante, nessa concepção, é traçar diretrizes objetivas que permitam encontrar regularidades entre os fenômenos, a ponto de estabelecer graus de generalização acerca das suas relações. De acordo com as palavras de Freire e Cavazotti (2007, p. 18), os estudos realizados nessa vertente investigativa são caracterizados por:


"[...] pesquisas que valorizam a neutralidade e a objetividade como os requisitos primordiais para se fazer ciência, considerando que a atividade de pesquisa é desenvolvida por um sujeito que “olha” para um objeto (seja ele musical ou não) e busca identificar ou caracterizar as “verdades” que esse objeto porta. Técnicas de coleta e mensuração de “dados”, de experimentação e observação, de tratamento estatístico são particularmente relacionáveis ao positivismo."



O positivismo representou, então, na segunda metade do século XIX e nas primeiras décadas do século XX um importante paradigma da ciência, inclusive no âmbito das ciências sociais. Como consequência da difusão das tendências positivistas no cenário científico da época, os estudos musicológicos também incorporaram essa perspectiva de produção do conhecimento, tendo parte significativa dos trabalhos realizados nesse período definidos a partir dessa dimensão teórico-ideológica da ciência.


Refletindo acerca da produção musicológica sobre a ótica do positivismo, Joseph Kerman (1987, p. 47) afirma que “os musicólogos ocupavam-se do verificável, do objetivo, do incontroverso e do positivo”. Para o autor, as perspectivas positivistas estiveram fortemente presentes na base dos estudos musicais até a segunda metade do século XX, conforme atesta sua afirmação de que:


"Ler sobre musicologia da década de 50 [século XX] é experimentar uma distorção intelectual do tempo. É notável como as palavras escritas por R.G. Collingwood acerca da historiografia positivista alemã no século XIX se enquadram perfeitamente na situação musical 75 anos depois, tanto no tocante à linha dominante de trabalho quanto aos descontentamentos que começam a ser expostos." (Kerman, 1987, p. 48-49).



Todavia, mesmo sendo um paradigma bastante consolidado no âmbito da ciência, o positivismo se enfraqueceu consideravelmente no âmbito das ciências humanas ao longo do século XX. Desse modo, passou-se a considerar outras vertentes de pesquisa, “que respeitassem mais a realidade dos objetos de estudo em ciências humanas; levou-se em conta outros métodos, menos intervenientes e capazes de construir o saber esperado”(Laville; Dione, 1999, p. 35). É com essa perspectiva de ciência que a pesquisa em música entra na segunda parte do século XX, consolidando-se academicamente e inserindo-se em novas realidades de um mundo em transformação, conforme discutido a seguir.


As mudanças na perspectiva da pesquisa em música a partir da segunda metade do século XX


A pós-modernidade, entranhada por uma complexidade de fenômenos que emergiram principalmente a partir da segunda metade do século XX, delineou, e vem delineando, caminhos que arquitetaram um “novo” mundo.


"Um mundo marcado pela acentuada velocidade das transformações sociais e culturais; pela problematização, (re)definição e relativização dos conhecimentos e dos valores estabelecidos; pelo crescimento demográfico e a urbanização exacerbada; e pela profunda e veloz expansão tecnológica e dos meios de comunicação; entre outros aspectos." (Queiroz, 2011, p. 136-137).


Para Lyotard (1993, p. 15), a pós-modernidade demarca “o estado da cultura após as transformações que afetaram as regras dos jogos da ciência, da literatura e das artes”. Gatti, nessa mesma direção, afirma que tais transformações se consolidaram principalmente a partir dos anos de 1950, com o estabelecimento de novos cenários sociais: “cibernético- informáticos, informacionais e comunicacionais” (Gatti, 2005, p. 599).

Nesse contexto, a ciência se transformou consideravelmente e os caminhos da pesquisa em música ganharam novos contornos, sobretudo a partir das grandes transformações consolidadas no período pós Segunda Guerra Mundial. Essas transformações mudaram tanto a forma de pensar e fazer ciência quanto processos de criação, circulação e transmissão do fenômeno musical (Queiroz, 2011).

Dessa maneira, a produção do conhecimento científico em música se redefiniu a partir desses dois parâmetros: o novo cenário musical e a nova configuração da ciência no século XX. Para Joseph Kerman, “como em muitas áreas do pensamento e da expressão artística – talvez em todas elas – o final da guerra [Segunda Guerra Mundial] marcou o início de um período de importantes mudanças, no qual virtualmente todos os aspectos da música foram transformados” (Kermam, 1987, p. 14).


Com efeito, o relativismo cultural, o reconhecimento da cultura como elemento fundamental na produção musical, os novos aparatos tecnológicos utilizados para o registro do som, entre outros aspectos, marcam a (re)definição dos rumos da pesquisa em música na contemporaneidade. De tal maneira, a área se estabeleceu e vem se estabelecendo de forma mais consistente e coerente, definindo campos bem delineados para “olhar” e analisar a música a partir de diferentes lentes interpretativas. Nesse universo, consolidaram-se subáreas que atualmente configuram o campo de estudos da música e que vêm definindo, cada vez mais, metodologias de pesquisa capazes de abarcar as particularidades que caracterizam a investigação científica de diferentes facetas do fenômeno musical.



As etnociências e suas implicações para a pesquisa em música


A partir da década de 1950, o termo etnociência passou a ser utilizado para designar o estudo científico de culturas, considerando as especificidades dos conhecimentos, valores, significados e demais características que se constituem a partir de idiossincrasias de cada universo social. Para Meehan (1980), as perspectivas etnociêncientíficas são constituídas por um conjunto de conceitos, preposições e teorias que são únicas para cada grupo de cultura em particular no mundo.


Grosso modo, a definição de etnociência não se aplica a uma disciplina, mas sim a um conjunto de saberes que, em diferentes áreas de conhecimento, visam compreender cientificamente uma determinada cultura a partir dos seus elementos específicos. Nas palavras de Rist e Dahdouh-Guebas:


"Etnociências são essencialmente multi-disciplinares, com base no aumento da colaboração entre ciências sociais e humanas (antropologia, sociologia, história da ciência, psicologia, filosofia) com as ciências naturais, como biologia, ecologia, agronomia, climatologia, astronomia, ou a medicina. Ao mesmo tempo etnociências são cada vez mais transdisciplinar em sua natureza [...]." (2006, p. 473).



No âmbito da pesquisa em música, essa concepção ganhou projeção, sobretudo, no campo da etnomusicologia que, numa perspectiva mais “atual”, em relação à da musicologia comparada do século XIX, visa estudar músicas a partir de suas diversas inter-relações com os sujeitos, grupos e indivíduos que as produzem e com os contextos culturais dos quais fazem parte. Apesar de encontrar maior representação no âmbito dos estudos etnomusicológicos, as perspectivas das etnociências influenciaram, direta ou indiretamente, outros campos da música, como as musicologias histórica e sistemática, a educação musical, a composição e as práticas interpretativas, que também passaram a considerar abordagens culturais como perspectiva, conceitual e investigativa, para suas pesquisas. O fato é que todos esses campos, na atualidade, reconhecem que as facetas dos fenômenos musicais que estudam podem ser interpretadas e compreendidas somente a partir da contextualização dos elementos sonoros com dimensões mais abrangentes do universo cultural que os circundam.



As tecnociências e seus impactos na produção do conhecimento musical


As chamadas tecnociêncas são vertentes de produção de conhecimento que associam a pesquisa científica ao desenvolvimento de tecnologia, tendo surgido no período da Segunda Guerra Mundial, mas ganhado projeção mundial a partir dos anos de 1950. De acordo com Echeverría (2009), as características que distinguem a tecnociência contemporânea da ciência “tradicional” estão relacionadas ao fato de que:


"A ciência busca, antes de tudo, conhecer como é o mundo: descrevê-lo, interpretá-lo, compreendê-lo, explicá-lo e, na melhor das hipóteses, prever, a priori, os eventos que irão ocorrer e retrodizer o que aconteceu, explicando a posteriori. O principal objetivo da tecnociência, no entanto, é transformar o mundo, quer natural, social ou artificial. A tecnociência está interessada no conhecimento, por isso tem um componente científico mas com uma diferença importante: para um cientista, o conhecimento é um fim em si mesmo, enquanto que para um técnico-cientista é um meio para alcançar outros objetivos. Para aqueles que promovem e financiam a tecnociência não é suficiente que a pesquisa gere conhecimento. Além disso, pretendem que dessas investigações surjam desenvolvimentos tecnológicos e, mais recentemente, também inovações." (p. 23).


Apesar de o termo tecnologia designar variadas ferramentas utilizadas pelo homem em épocas diversas, no âmbito das tecnociências, a junção de ciência e tecnologia designa o período em que o forte aparato tecnológico da pós-modernidade vira o cerne da produção de conhecimento. No universo da pesquisa contemporânea, a tecnologia tem ocupado um duplo papel, sendo por vezes o foco ou o produto final da investigação científica (como visa as tecnociências), mas desempenhando, também, papel fundamental como o meio utilizado para registro e análise de dados no processo de gestão dos saberes nos diferentes campos de conhecimento científico. Nessa última dimensão, as tecnociências têm alterado, consideravelmente, bases metodológicas da ciência em geral, sendo imprescindíveis na atual realidade da pesquisa acadêmica.


No que tange ao universo da música, a partir da ascensão das tecnociências, há uma profunda mudança nas formas de registro, produção, circulação e transmissão musical. De tal forma que a expressão da música em si é diretamente afetada por essa realidade. No que concerne à pesquisa em música, as novas ferramentas tecnológicas que emergiram a partir do arsenal produzido na era das tecnociências, estabeleceram e vêm estabelecendo novas formas de registros e análise do som, mecanismos para o processamento de áudio, recursos de captação e edição audiovisuais, entre outros aspectos, que mudam consideravelmente nossas formas de fazer pesquisa, tanto no processo de coleta e análise de dados, quanto no processo de divulgação e circulação dos trabalhos produzidos. Sem dúvida essa é uma vertente de grande importância para a pesquisa em música a partir de meados do século XX e que vem se transformando a cada dia, possibilitando recursos para a pesquisa musical inimagináveis para a ciência do século XIX.


É nesse cenário de transformações, com recursos e possibilidades de pesquisa que se redefinem em uma velocidade exarcebada, que entramos no século XXI. Assim como as demais áreas de conhecimento, a música, enquanto ciência, delineia suas perspectivas de pesquisa por caminhos já experimentados e consolidados, mas em constante processo de atualização e transformação. Nesse sentido, a pesquisa na área encontra-se em ascensão e, com vistas a compreender a face multifacetada da música, vem estabelecendo, cada vez mais, perspectivas metodológicas como um campo autônomo de produção de conhecimento científico.


Em construção... em alguns dias esse texto estará disponível na íntegra neste blog.


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